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Solução ou ilusão?

07/01/2019

​Especialistas argumentam que os veículos elétricos podem ser mais danosos ao meio ambiente do que os movidos a combustão.


Por Agência CNT de Notícias
Foto: divulgação ABVE

A mensagem do Acordo de Paris para que o aumento da temperatura não seja maior que 2°C até o fim do século é clara: a população mundial deve rever sua maneira de gerar e consumir energia, investindo em fontes renováveis e em tecnologias que fomentem a sustentabilidade. A descarbonização do setor de transporte é peça fundamental nesse quebra-cabeça. Nesse contexto, os veículos elétricos vêm despontando como uma aposta para mitigar esses impactos. 

Até 2030, o mundo terá em circulação 140 milhões de veículos elétricos, segundo projeções da IEA (Agência Internacional de Energia). Atualmente, são 3 milhões de unidades. A China representa o equivalente à metade desse mercado, e países da América do Norte e da Europa já fomentam políticas regulatórias de longo prazo para também estimular a indústria. No Brasil, a adoção da tecnologia ainda é incipiente: apenas 300 veículos circulam por aqui. 

Em tese, a adoção de uma tecnologia limpa, livre da dependência do petróleo, com potencial para reduzir a poluição atmosférica e sonora, parece ser a solução perfeita para que países consigam cumprir as metas acordadas em 2015, na capital francesa. Entretanto, uma corrente de especialistas é radicalmente contra o incentivo à indústria de elétricos e considera o fomento uma espécie de ilusão em nome da sustentabilidade. 

Uma das principais críticas diz respeito à emissão de gases de efeito estufa no processo de carregamento das baterias, movidas a eletricidade. De onde vem essa energia? Na China, 75% é oriunda da queima do carvão, nas usinas termelétricas, o que, na prática, intensifica a poluição. Na Califórnia (Estados Unidos), cerca de 60% também vêm da queima de combustíveis fósseis. Isso significa que a teoria de emissão zero pode ser uma falácia, visto que o ciclo completo do veículo, desde a fabricação até a reciclagem, é mais nocivo ao meio ambiente. Enquanto um veículo convencional abastecido a gasolina emite 99 g de CO2, o elétrico, abastecido por usina de carvão, emite mais de 200 g de CO2. 

“A China tem problemas muito sérios de qualidade do ar. O país opta pelos veículos elétricos, entre outros motivos, porque considera que é melhor emitir gases em uma usina afastada das cidades do que investir em veículos movidos a combustão, que lançam os gases nos centros urbanos. O controle de emissões em usinas pode ser mais simples do que em milhares de veículos. Também deve ser lembrado que o motor elétrico é muito mais eficiente do que o motor a combustão elétrica”, avalia Carmen Araújo, consultora do ICCT (Conselho Internacional do Transporte Limpo, na tradução livre), organização não governamental que desenvolve estudos e análises para políticas públicas na área. 

No Brasil, contudo, esse tipo de imbróglio para o carregamento das baterias não seria problema, uma vez que as fontes de obtenção de energia são limpas e provenientes, sobretudo, de usinas hidrelétricas. O fato de o país possuir grandes reservas de petróleo e de o etanol integrar 27% da composição da gasolina que abastece os veículos também é um motivo que garante diferencial em termos de cumprimento de metas e que inibe a implementação dos elétricos no cenário brasileiro. 

Matéria-prima 

Além do abastecimento, especialistas criticam o processo de extração das matérias- -primas para a fabricação das baterias. Em primeiro lugar, porque há receio de que as reservas de lítio, principal metal utilizado, não sejam suficientes para atender à demanda crescente da indústria. Ou seja, as maiores reservas – localizadas na Bolívia, no Chile, nos Estados Unidos, na Argentina, na China e na Austrália – podem estar ameaçadas. Em segundo lugar, porque o lítio é um metal raro, cuja exploração libera toxinas que são altamente prejudiciais ao meio ambiente e à saúde não somente dos mineradores mas também de toda a sociedade. 


Foto: divulgação FGV Energia

“Qualquer processo de extração é danoso ao meio ambiente. Por outro lado, países em desenvolvimento podem aproveitar a riqueza mineral para lançar mão de políticas públicas que turbinem suas economias. Os governos precisam ter forças para conciliar os lados econômico e ambiental”, avalia Fernanda Delgado, professora e pesquisadora da FGV-Energia (Fundação Getulio Vargas). O Brasil ainda não fabrica esse tipo de bateria em grande escala, mas exporta outros tipos de metais usados nessa cadeia, como o silício. Além disso, possui a maior reserva de grafeno do mundo, o que seria um incentivo à produção nacional. 

De acordo com o presidente da ABVE (Associação Brasileira de Veículos Elétricos), Ricardo Guggisberg, matérias-primas alternativas podem suprir a demanda da indústria com a mesma eficiência do lítio. “Com a evolução das baterias de grafeno, por exemplo, seremos líderes na exportação para diversas partes do mundo. Sem falar que as baterias poderão ser recicladas e reutilizadas em novos processos. O desenvolvimento do setor só vai trazer riquezas para o Brasil. Quem impede que isso aconteça está subestimando a nossa capacidade de nos aproximarmos de grandes potências. O mercado de elétricos é uma tendência mundial. O carro a combustão interna está com os dias contados”, enfatiza. 

Em nota, a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) afirma que existe um movimento forte pela redução das emissões de poluentes, com a introdução de veículos híbridos e elétricos. “Porém não há apenas um caminho a ser seguido, mas, sim, várias rotas tecnológicas. Nessas rotas, os biocombustíveis terão papel fundamental. O mundo caminha para a eletrificação, entretanto, mesmo com tantos estudos, existem vários desafios a serem superados, como as baterias e a geração de energia para abastecer veículos elétricos. Nesse contexto, o nosso etanol é talvez hoje a melhor opção, principalmente para o Brasil. É um combustível renovável cujo ciclo de carbono é neutro ao considerar do plantio à roda.”

Reciclagem 

A reciclagem é também alvo de questionamentos por parte dos especialistas. O argumento é que, como o ciclo de fabricação desses veículos ainda é recente, não se sabe como essa logística vai funcionar no futuro. “Quando o proprietário quiser trocar a bateria após o término da vida útil, como será o processo? Onde o equipamento será descartado? A montadora vai se responsabilizar?”, provoca a pesquisadora da FGV-Energia. A venda desses veículos também é uma incógnita, uma vez que as baterias já estarão gastas e não há como prever se os proprietários vão desembolsar cerca de R$ 50 mil para comprar uma nova. Hoje, o equipamento representa entre 30% e 50% do valor total do veículo. 

Além disso, o preço dos veículos não é adequado à realidade nacional. “Os elétricos são muito caros. Apenas 5% da população brasileira consegue comprar um carro que custe mais de R$ 80 mil. A indústria automobilística já recebe uma série de incentivos do governo. O país tem outras urgências”, critica Fernanda Delgado. 

Incentivos 

O governo federal tinha a previsão de lançar, até o fim de 2018, o Plano Nacional de Eletromobilidade, documento que mapeia as competências da indústria nacional para participação no mercado bem como traz propostas de políticas públicas aplicáveis à realidade brasileira. Além disso, o programa Rota 2030, aprovado pelo Congresso Nacional em tempo recorde e sancionado pelo presidente Michel Temer, trabalha com o conceito de metas de eficiência energética. 

De acordo com o MDIC (Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços), o programa estabelece que a tributação do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) de veículos elétricos e híbridos, ao contrário dos veículos convencionais, não seja calculada de acordo com a cilindrada do motor, e, sim, de acordo com a eficiência energética e o peso. Tal sistema de tributação privilegia, com alíquotas mais baixas, automóveis com maior eficiência e menor peso, incentivando a oferta de modelos com essas características por parte das montadoras. 

O ministério ressalta que, ao contrário do que ocorre na China e na Europa, a recarga de veículos elétricos no Brasil não deve ser vista como uma fonte de emissões, mas, sim, como uma forma de evitar emissões. “Com o aumento da participação de fontes como a fotovoltaica e a eólica, crescem as possibilidades de que as recargas sejam sempre sustentáveis”, diz a resposta enviada à reportagem da revista CNT Transporte Atual. 

Especialistas observam, todavia, que energias alternativas, por si só, não descartam a necessidade do uso do petróleo e do gás natural no Brasil, sem falar na indústria do etanol e dos biocombustíveis, que se encontra em estágio mais avançado. “As energias eólica e solar são limitadas à quantidade de vento e a certas posições geográficas, ou seja, não dão cobertura para todo o país. O gás natural não tem limitação em relação à quantidade assim como o petróleo. Não é possível abrir mão dessas matrizes energéticas”, conclui Fernanda Delgado.

MOBILIDADE 

Cidades brasileiras utilizam ônibus elétricos 

A indústria de automóveis elétricos ainda é incipiente no Brasil em comparação com a de ônibus. A cidade de São Paulo (SP), por exemplo, já possui mais de 400 veículos com tração elétrica em operação. Campinas (SP) e Curitiba (PR) também possuem exemplares em circulação. Em todo o mundo, já são 345 mil ônibus elétricos, sendo mais de 99% dessa frota localizada na China. 


Foto: divulgação ABVE

“No caso do transporte público, é mais fácil planejar a infraestrutura de recarga para ônibus, porque as rotas são bem definidas. Além disso, os veículos podem ser recarregados na garagem ou podem ser abastecidos por uma espécie de carga rápida ou de passagem. Em termos ambientais, esses veículos são mais vantajosos tanto em termos de emissões de gases de efeito estufa como de poluentes locais. Já em termos financeiros, a bateria dos ônibus tem atualmente um preço de compra mais alto, mas, considerando que os custos operacionais são substancialmente menores, os custos líquidos, ao longo da vida do ônibus, são também menores quando comparados com as tecnologias tradicionais a diesel”, defende Carmen Araújo, do ICCT. 

AUTONOMIA

Recarga ainda é impedimento 

Os elétricos também implicam necessidade de maior investimento na infraestrutura de recarga das baterias. O presidente da ABVE, Ricardo Guggisberg, reconhece que o tópico é um impeditivo para o desenvolvimento da indústria em âmbito nacional. “Atualmente, os veículos costumam ser recarregados à noite, na casa das pessoas. Eles têm autonomia de até 300 quilômetros, ou seja, é possível rodar dentro das cidades. O problema é se o proprietário optar por uma viagem de distância maior que a capacidade da bateria. Para isso, são necessários pontos de recarga no meio do caminho”, observa Guggisberg.

Foto: divulgação ABVE

A Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) aprovou, em junho deste ano, regulamentação para interessados na prestação desse serviço, como distribuidoras, postos de combustíveis, shopping centers e empreendedores. Para isso, optou por regras mínimas, que evitam entraves da atividade nos processos tarifários dos consumidores de energia elétrica, quando o serviço for prestado por distribuidora. 
A regulamentação tem como principal objetivo reduzir a incerteza aos que desejam investir no desenvolvimento da infraestrutura de recarga de veículos elétricos. O regulamento permite a qualquer interessado a realização da atividade, inclusive para fins de exploração comercial a preços livremente negociados, a chamada recarga pública. De acordo com a norma, a distribuidora de energia elétrica pode, a seu critério, instalar estações em sua área de atuação destinadas à recarga pública de veículos elétricos.

Evie Gonçalves